domingo, 13 de outubro de 2013

UM MENINO TRAQUINAS DO APODI.

Marcos aos 08 anos, e o irmão Marcondes(já falecido)
 com seu pai na lagoa do Apodi
       Para  que  inventei  de   mexer  e  remexer  o  baú  de  minhas  saudades ?.  Não  mais que de repente  me  ví  menino   traquino, que  é  o  referencial  nordestinês  para  se definir  menino  danado, impulsivo, assassino  libidinoso  de  galinhas  cevadas.  Me  ví  menino  bocó  diante  a  beleza  da  primeira  professorinha, de  face  rosada  por acentuada  camada  de  "Rouge", espalhando  o  seu  cheiro  característico.  
           A  pequenina  cidade  acordava  sob  o  auspicioso  som  da  banda  de  música  municipal,  irradiando  emoções  em  seus  dobrados  executados  no  patamar  da  Igreja-Matriz  de  São  João  Batista  e  Nossa  Sra. da  Conceição, lugar  preferido  para  onde  me  dirigia  aos  primeiros  albores  de  radiantes  manhãs.  Deitava-me  na  calçada  e  ficava  olhando  para  o  alto, em  êxtases  oníricos. O menino  fixava  em  perene  olhar    o  vôo  das  andorinhas, que  enfeitava  os  meus  sonhos  em  seus  vôos  rasantes, rabiscando no  azul   do  céu  uma  perfeita  e  exímia  sincronia  entre  nuvens  superpostas, enviando-me  recados  fantásticos  dos  mistérios  circundantes.  Impregnavam-se em  minha  alma  infantil  um  colorido  perfeito  de  projetos  inebriantes.
         Na  estação  invernosa  o  menino  sonhador  assenhoreava-se  das  biqueiras  da  venerada  Igreja-Matriz, que eram as  melhores  goteiras  da  cidade, por onde escoavam  abundantes  jorros  d'água,  que  no princípio da  chuva   doíam no  cocoruto, mas  que   à  medida  que  aumentava  seu  volume  diminuía  o  impacto  na  pequena  cabeleira, cortada no  estilo militar.
        Como  encantavam-me  os  claros  matinais, em seus  primeiros  albores !.  Na  mente  do  menino  existia  um  mundo  que terminava  logo  após  a  lagoa, entre  os  verdes  carnaubais  dos sítios  "Garapa"  e  "Vertentes".  Minha  alma  translúcida   deslizava  mansamente  sobre  o  límpido  espelho  d'água  da  Mãe-Lagoa, ornada  pelo  verde  exuberante  de  suas  margens.  E  os  sonhos  do  menino  pegavam  carona  nas  canoas  dos  pescadores, acompanhando  o  risco  n'água  deixado  pelo  trajeto  das  humildes  embarcações  sertanejas.  
        As  famosas  conversas  noturnas  alinhavadas  na  calçada  da  casa  de  Sêo  Lulu  Curinga  abordavam  histórias  malassombradas,  que  causavam  frio  na  coluna  e  arrepios  no  curioso  infante.  O  silente menino  absorvia  os  lances  interessantes  das  histórias  de  Trancoso  e  de  Camões, que  em  meu  dialeto-matuto  pronunciava  "Camonge".  Ví, muitas  vezes  a  PROCISSÃO DAS  ALMAS, nas  madrugadas  em que o meu  saudoso  pai  me  despertava  e me  levava  para  o  antigo prédio onde  funcionava  a  Agência  de  Rendas  Fiscais  do  Estado, alí  na  esquina onde  hoje  está  construído  o "Castelinho", do primo  Castelo  Torres. Eu via,  ao  longe, alí  pela  rua  Margarida  de  Freitas, imediações da  casa de  Celeste  Marinho, as  supostas  almas  passarem  com  algo aceso  nas  mãos, que  meu  pai  me  fazia  acreditar  serem  ossos  das  pernas  acesos  e  carregados  em  procissão  pelas  almas.  Depois  que  crescí  e  me  fiz  de  gente  descobrí  que  se  tratavam  dos  machantes (Magarefes)  Ussí de  Sêo  João  Tito, seu  irmão  Damião   e  mais  uns  dois  outros, que  se  dirigiam  à  matança (Matadouro  público) para  abaterem  seus  caprinos  e  suínos, para  posterior venda  no açougue  público.
        Ouço, nos  confins  da  esquina  do  tempo  que  lá se  vai, os  dobres  soturnos  dos  venerandos  e  vetustos  sinos  da  nossa  amada  Igreja-Matriz, quebrando  o  imenso  silêncio  da  cidadezinha  ainda  adormecida, na  cadência  monótona  daquelas  escalas, onde  o  tempo  era  um  denominador-comum, distribuído  aos  pedaços, marcando  a  marcha  do  tempo e  do  ciclo  vicioso  da  vida.  Aquele  menino  tinha  a  mente  pautada  pelos  mistérios   dos  sonhos, vivendo o  cotidiano das  mesmas  imagens e dos mesmos  sons, sem fazer  nada, num  viver  apático,preguiçoso  e  inútil.  Eu, um  menino  sambudo, magro  feito  sibito baleado, afeito  às  repetitivas  brincadeiras  e  banhos  fortuitos  e  rápidos  de  menino  fugitivo do  olhar  fiscalizador do   pai.  Era um  viver  nostálgico  sem fim, de  brincadeiras  de  pião, gaiatices, travessuras  e  fuxicos.  Viver  ao  meu  modo  era  e  sempre  será  a  minha  filosofia.  E  assim  vou  remexendo os  meus arquivos  memoriais  sempre  bolorentos pelo mofo  das  horas  do  quase  esquecimento. SAUDADES...

    Apodi  de  São  João  Batista  e  Nossa  Sra. da  Conceição, aos  09 dias  do  mês  de  Outubro  do  ano  de  Jesus  Cristo  de  Dois  mil  e  treze.

      Marcos  Pinto  -  Comboieiro  da  saudade.

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